segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Presença

I

Ele acordou sem motivo aparente. Depois que você acorda, nem sempre dá para saber porque você acordou. É que na hora que o que te acordou aconteceu, você ainda tava dormindo. E agora ele estava acordado e a escuridão era completa. Os olhos abertos eram inúteis. Resolve que é melhor que eles fiquem fechados mesmo. Mas agora, a consciência de que eles não servem para nada, de que o quarto está tão escuro, deixa ele desconfortável. Vez ou outra, ele abre os olhos para testar a incapacidade deles. E segue acordado.

A cama mexeu. Ele abre os olhos rápido, só para fechar de novo ainda mais rápido quando percebe que, abertos ou fechados, não havia diferença. Ele está preso à cama. Com medo. Além do mais, se levantar da cama agora é capaz de acordar a mãe e ele já tomou uma bronca por ter ido dormir tarde e depois apagado na escola durante a aula de geografia. Mas só porque era geografia física e ele não entendia porque ele tinha que saber o nome dos rios para ser astronauta.  E a mãe dá mais medo que a cama mexer. Até porque pode ter sido só impressão. Ele que mexeu. É, foi isso.

De novo. Mexeu de novo e dessa vez ele tinha certeza. Que horas devem ser? E se ele se cobrir inteiro? E se fingir que está dormindo? Para fingir que estava dormindo ele tinha coragem. Fechou os olhos e se esforçou para ficar imóvel. Sentia apenas sua respiração movendo o corpo. Teve a impressão de ter alguém em cima dele, sem encostar, por um tempo. Algo como sentir o deslocamento do ar na sua frente misturado com a sensação de ser observado. Mas quando ele abriu o olho, o sol já tinha nascido. Como se ele tivesse apenas piscado. A mãe já estava falando dentro do quarto sobre como eles já estavam atrasados, que se ele queria tomar café da manhã ia ter que ser no caminho, já não dava mais tempo, e não pensa que eu não ouvi você andando de madrugada no quarto, viu, menino? Você não me engana.


II

Viveu assim por anos. Nada nunca acontecia de diferente e ele simplesmente se acostumou a dormir daquele jeito. Algumas noites, quando a mãe viajava e ele não ficava sozinho, parecia que nada acontecia. A companhia na cama acabava com os fenômenos difíceis de explicar. Mas difícil mesmo era explicar para mãe o que isso tinha a ver com a decisão de sair de casa na primeira oportunidade. Não precisa inventar desculpa, pode admitir que é porque você não gosta mais de viver com a minha companhia, blá blá blá.

A namorada passou a dormir com ele tantas noites que era até estranha a sensação quando ela ia embora. Meio que um vegetariano quando come carne. Nessas noites sozinho, principalmente no começo, ele ainda conseguia sentir. O leve tremor inesperado. A sensação de mais alguém no quarto vazio.
Ele sabia que depois, quando a namorada voltasse, a sua outra companhia ia parar. Ele não tinha esperanças de ficar sem ela. A presença sempre voltava.

Algumas mudanças acontecem de um jeito muito gradual. E até faria sentido se essa fosse. Mas não foi. Foi como se um interruptor tivesse sido ligado. A chave caiu. Ele não amava mais a namorada. Foi um dia de manhã que ele acordou logo antes do despertador. Alguns minutos antes, de acordo com o relógio. Ao invés de voltar a dormir, ele desligou o despertador, levantou sem sono e foi tomar banho. Sem sono, sem sentir nada. Saiu do banho e olhou para a namorada ainda deitada na cama como se olhasse para a cama vazia. Preparou café-da-manhã para os dois como se só estivesse desperdiçando parte da comida. Comeram juntos como se come na mesma mesa de um desconhecido em uma praça de alimentação lotada. Se separaram temporariamente na porta do metrô, ela desceu e ele foi em direção ao ponto de ônibus. Se separariam definitivamente naquela noite se ele tivesse tido a coragem. Mais fácil fingir que dormia. Para isso ele tinha coragem.

Foram 3 meses antes de ela levar todas as coisas embora. A presença não estava mais lá também. Na cama, só os seus movimentos. No escuro, nenhuma sensação estranha. Ele sentia um pouco de falta da namorada, mas com o tempo passou a sentir falta também da presença. Passou a dormir mal. Demorou para se acostumar. Seus sonhos pareciam menos criativos. Seus dias acabaram ficando sonolentos. Mas, com o tempo, a presença virou apenas a nostalgia. De tempos diferentes. Quase uma outra vida.


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