sábado, 16 de outubro de 2010

Screwdriver



O porteiro deve ter deixado ela entrar sem falar nada. Afinal de contas, ela vinha e ficava tanto tempo na minha casa que ele deve ter achado que ela morava aqui. A porta abriu de repente. Eu não estava esperando ninguém àquela hora. Muito menos numa terça feira. Cambaleava lentamente, como uma equilibrista experiente. Parou quando encostou as costas na porta fechada. Tirou uma garrafa de vodka da bolsa, daquela pequenas que vendem em lojas de conveniência de postos de combustível. Abriu e estendeu a garrafa na minha direção. Concordei de leve com a cabeça. Mais para tirar a garrafa da mão dela do que de fato pela bebida. Levantei, agarrei a vodka e fui até a cozinha pegar um pouco de gelo. Ela ficou inerte na porta, me observando com os olhos manchados de maquiagem, como se tivesse chorado. Qualquer pessoa de boa alma que reparasse nela na rua perguntaria se estava tudo bem. Era bonita e inspirava esse tipo de confiança nas pessoas. Mas você pode imaginar que nào existem muitos pedestres de boa alma na madrugada de São Paulo. Ela não deveria ter vindo para cá. Isso não vai dar certo.

Coloco suco de laranja na minha vodka e só suco de laranja num copo para ela. Com sorte, ela nem vai reparar. Quando voltei, ela tinha se movido. Estava largada no sofá, cigarro recém aceso na boca, olhando as botas. Quando entrei na sala ela olhou para mim. Um sorriso com cigarro no canto da boca. Me ajuda a tirar? Deixei os copos perto da TV, que passava um documentário sobre Noel Rosa, e ajudei os pés dela a se livrarem do couro que os sufocava. O pé dela não era muito bonito. Bem, pelo menos alguma coisa não podia ser. Dei o suco de laranja para ela.

Duas coisas, primeira: coloca um rock ai, porque to sem saco pra samba, segunda: você não tem que cuidar de mim, sabe?

Então por que você veio aqui?

Porque eu gosto da sua companhia.

Garota, a gente terminou já tem dois meses. Você não acha que isso faz mal para você? Vir aqui, eu digo.

Acho. Mas ficar longe também faz.

Ela ficou em silêncio e eu também não tinha mais o que dizer. Devem ter se passado uns 5 minutos pelo menos antes de algo ser dito, porque foi bem na hora que ela apagou aquele cigarro.

Acho que eu só queria entender porque eu sinto tanta falta sua. Você é feio, e sinceramente tem se provado um puta cuzão.

Eu sei.

Por que?

Isso eu não tenho com te responder.

Por que você me deixou?

Não gosto de falar sobre isso, já passou.

Ela jogou o copo na parede logo ao meu lado, com raiva. Já passou? Já passou pra quem, seu filho de uma puta.


*Desenho de Amanda Talhari

Da leveza do amor tranquilo

Ela me disse: eu quero a leveza de um amor tranquilo. Amor fácil, meu bem, é para quem tem dificuldade de amar. Para quem encontra no outr...