sábado, 16 de outubro de 2010

Screwdriver



O porteiro deve ter deixado ela entrar sem falar nada. Afinal de contas, ela vinha e ficava tanto tempo na minha casa que ele deve ter achado que ela morava aqui. A porta abriu de repente. Eu não estava esperando ninguém àquela hora. Muito menos numa terça feira. Cambaleava lentamente, como uma equilibrista experiente. Parou quando encostou as costas na porta fechada. Tirou uma garrafa de vodka da bolsa, daquela pequenas que vendem em lojas de conveniência de postos de combustível. Abriu e estendeu a garrafa na minha direção. Concordei de leve com a cabeça. Mais para tirar a garrafa da mão dela do que de fato pela bebida. Levantei, agarrei a vodka e fui até a cozinha pegar um pouco de gelo. Ela ficou inerte na porta, me observando com os olhos manchados de maquiagem, como se tivesse chorado. Qualquer pessoa de boa alma que reparasse nela na rua perguntaria se estava tudo bem. Era bonita e inspirava esse tipo de confiança nas pessoas. Mas você pode imaginar que nào existem muitos pedestres de boa alma na madrugada de São Paulo. Ela não deveria ter vindo para cá. Isso não vai dar certo.

Coloco suco de laranja na minha vodka e só suco de laranja num copo para ela. Com sorte, ela nem vai reparar. Quando voltei, ela tinha se movido. Estava largada no sofá, cigarro recém aceso na boca, olhando as botas. Quando entrei na sala ela olhou para mim. Um sorriso com cigarro no canto da boca. Me ajuda a tirar? Deixei os copos perto da TV, que passava um documentário sobre Noel Rosa, e ajudei os pés dela a se livrarem do couro que os sufocava. O pé dela não era muito bonito. Bem, pelo menos alguma coisa não podia ser. Dei o suco de laranja para ela.

Duas coisas, primeira: coloca um rock ai, porque to sem saco pra samba, segunda: você não tem que cuidar de mim, sabe?

Então por que você veio aqui?

Porque eu gosto da sua companhia.

Garota, a gente terminou já tem dois meses. Você não acha que isso faz mal para você? Vir aqui, eu digo.

Acho. Mas ficar longe também faz.

Ela ficou em silêncio e eu também não tinha mais o que dizer. Devem ter se passado uns 5 minutos pelo menos antes de algo ser dito, porque foi bem na hora que ela apagou aquele cigarro.

Acho que eu só queria entender porque eu sinto tanta falta sua. Você é feio, e sinceramente tem se provado um puta cuzão.

Eu sei.

Por que?

Isso eu não tenho com te responder.

Por que você me deixou?

Não gosto de falar sobre isso, já passou.

Ela jogou o copo na parede logo ao meu lado, com raiva. Já passou? Já passou pra quem, seu filho de uma puta.


*Desenho de Amanda Talhari

terça-feira, 28 de setembro de 2010

A sorte nunca é pura

Algumas pessoas passam anos estudando para ganhar dinheiro. Outras esperam por alguma oportunidade que elas nem sabem direito o que é. Sentam e torcem para serem atropeladas pela sorte. Eu estaria em alguma categoria do meio disso. O cinza perfeito.

Estudei por alguns anos. Muito mais do que a média da população brasileira. Mas faço a vida com a sorte. Não chego a ser uma aberração. Não acho milhares de reais na rua todo dia. Nunca achei um bilhete premiado da Megasena. Nem ganhei nas vezes em que joguei. Pelo menos não o prêmio cheio. Já ganhei uma quina, que é uma grana boa, mas nunca esses prêmios acumulados gigantescos que fazem as pessoas fantasiarem com o ócio. Eu nunca ganho dinheiro suficiente para não precisar mais ganhar dinheiro. Mas nunca tive um trabalho formal. Daqueles que você acorda cedo e faz amizades durante o happy hour na sexta. A maior parte dos meus colegas são pessoas compulsivas, que frequentam as casas de jogos nas quais eu vou. Assim como eu, não se divertem mais. Algumas vezes fazemos piada das pessoas que aparecem, riem, ganham, ou perdem, e nunca mais voltam.Outras vezes, sinto que meus colegas têm inveja.

Eu falei que minha sorte não era sobrenatural, mas às vezes parece, até para mim. Teve uma vez que eu saí de casa para comprar meus picoles. Eu gosto muito de picoles. Compro uma caixa por semana. Normalmente vem algum premiado, na maioria das vezes com os prêmios mínimos da promoção do momento. Nesse dia, o chicabon que eu sempre compro tinha acabado. Ai eu pensei “Tá vendo, e depois as pessoas me acusam de ser sortudo.” Comprei uma caixa de Magnun, para variar um pouco, sabe? Absolutamente todos os picoles vieram premiados. Todos. Além de ganhar uma caixa quase inteira de novo, ganhei pelo menos um de cada prêmio da promoção. O prêmio máximo era um carro, que demorou muito tempo para ser entregue porque os caras da agência de promoção fizeram uma investigação para saber porque aquilo tinha acontecido. Acharam que eu tinha trapaceado. Não os culpo, eu também acharia. No dia que o carro novo chegou, meu carro antigo, que eu ainda não tentara vender porque estava esperando a situação com a agência se resolver, foi roubado. Nunca mais acharam o carro. Dois dias depois, a montadora do meu carro antigo fez um recall. Para comemorar a sorte, joguei na megasena os números das placas dos carros. 8456 e 2319. Joguei 8, 4, 56, 23 e 19. Como falto um número, chutei o 40. Foi o único número que eu errei.

Dinheiro não é a única coisa com a qual eu dou sorte. Nunca fui multado, mulheres bonitas discam meu número por engano, consigo chutar uma prova inteira e não errar uma questão. Tudo isso sem nem um mísero talismã. Agora, o que vocês imaginam que um cara com essa sorte toda faz com ela? Eu mesmo não faço nada. Eu só pego o que a vida generosamente me dá, como um nômade. Algumas pessoas plantam árvores para poder colher maçãs, eu sou atingido por elas no meio do deserto.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Zacarias

Zacarias chegou em casa e se perguntou porque insistia em voltar no horário de sempre. Sua esposa, Karen, tinha ido embora já fazia dois anos. Não suportou sua obsessão pelo assassinato da Verônica. Dizia que até a Dona Marta desistira. Na verdade tinha ciúmes. Veja isso, ciúmes de uma mulher morta. Uma menina. Não teria hoje trinta anos.
Zacarias tinha dores de cabeça fortíssimas desde que sua esposa foi embora. O médico não soube dizer porque. O médico não tentou descobrir porque. Cinco minutos de consulta só foi suficiente para prescrever remédios de dor. Mas ele sabia que era da obsessão. Que a dor vinha porque ele não tinha a resposta.
Naquele dia ele tinha sido obrigado a fechar o caso da Verônica. Perdia, finalmente, sua chance de se tornar herói. A imprensa fez todo o circo que pôde em cima do assassinato. Ele acha que isso atrapalhou, mas entende os motivos. Entende a indignação. Hoje, o circo midíatico parece para ele a única redenção que a menina recebeu. Pelo menos as pessoas acharam errado, entende?
Zacarias estava cansado. Há meses pensava em se matar. Hoje achou que não tinha outra escolha. Foi para casa pensando no que ia escrever no bilhete. Não tinha de quem se despedir, mas achou que era importante um bilhete de despedida. Pensou em Karen. Podia mandar uma carta, mas não queria que ela ficasse se remoendo de culpa em cima de um pedaço de papel. Na verdade, queria, mas achou que ia ser uma atitude egoísta.
Sentou-se em uma cadeira de balanço de madeira. Em frente a janela, ficou sentado até o dia amanhecer. Pensou em tudo que conseguiu. Lembrou sua história, e não conseguiu ver o final feliz dos filmes. Ele gostava de finais felizes. Parecia que todo o sofrimento poderia ser justificado se tudo desse certo no final. Todos os fracassos não importavam se no final alguma coisa desse certo.
A dor na cabeça aumentou, mas ele não viu motivos para tomar o remédio. Logo a dor ia passar. Tinha escrito seu nome em uma das balas. Achou a piada interessante. Usou um esmalte que a Karen deixou. Lembrou-se de um filme que falava que as pessoas que deixam coisas importantes fazem isso porque não querem ir embora. E a Karen gostava de esmaltes.
Arma na boca. Oito da manhã. O telefone toca. Karen. “Te acordei?” “Mais ou menos.” “O Zé me ligou. Falou que fecharam o caso da menina. Você tá bem?” “Volta.” “...” “Volta.” “Volto.”

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Xavier

A luz piscando rápida e incessantemente faz com que as pessoas pareçam estar se mexendo devagar. Ela dança como se estivesse sozinha, e pra mim ela está. Completamente sozinha no meio da pista. E com aquela luz ela parece traduzir perfeitamente os movimentos da música. Devagar. Sexy. Pra mim é como se ela não existisse de verdade. Ela é apenas mais uma alucinação causada pelo álcool. Nesse exato segundo não existe ninguém mais bonita que ela no mundo inteiro. As minhas costas se desprendem, com muito custo, da parede do lugar e eu inclino meu corpo pra frente tentando procurar coragem na inércia desse movimento. Mas eu me equilibro pra não cair, e a coragem some. E agora eu estou perdido num mar de pessoas dançantes que esbarram em mim. Eu perdi todas as poses e artifícios no segundo que eu vacilei. Mais dois passos corajosos em direção a ela. Ela olha pra mim. Olha pra mim como se olha um vaso sem flores. É assim que ela me vê. Sempre lá e sempre vazio. Me cumprimenta com um sorriso educado. E eu sinto que não deveria estar ali. Me viro e saio derrotado. Sento em um sofá no canto do lugar. Eu poderia ir embora. Mas não vou. Espero tudo acabar, as luzes se acenderem e o segurança pedir para eu me retirar, A casa tá fechando.
Acordo devagar. Rolo na cama procurando um motivo para me levantar. “É um novo dia” e “as coisas vão ser diferentes” nunca funcionaram pra mim. Mas meus olhos estão abertos. Abro os braços e as pernas. Reúno forças e me levanto mesmo sem motivo, mas só porque não tinha mais motivo pra ficar deitado. Me levanto para ficar de pé, enfim. Caminho pelo meu apartamento vazio e bagunçado. O telefone toca estridente.
Olá, eu estou ligando por causa do currículo que você nos enviou. É o Xavier Ocanha falando, certo? Então, diz aqui que você se formou há dois anos, tem 3 anos de experiência na área, correto? Foi com estágio? Você está disponível agora, não? Seu inglês é fluente, assim como seu espanhol e seu alemão? Ah, o francês também? Por que um poliglota se forma em biblioteconomia? Bem, o emprego é para organização dos arquivos e aplicação do modelo das grandes bibliotecas, sabe? Aquele que é o nome do cara? Então, é esse ai nos volumes que a gente tem aqui, que é mais volume jurídico e histórico mesmo. Você está interessado? A gente pode marcar uma entrevista hoje ainda. Tem como você vir? Fica no Bela Vista mesmo. Três da tarde tá bom? Te vejo aqui.
Entrevista vazia. Normal quando a empresa não tem muita certeza do que quer, ou do que precisa. “Por que um poliglota se forma em biblioteconomia?”. Minha mãe me perguntou isso diversas vezes. Mas ela também nunca entendeu direito o que eu faço. Comecei a trabalhar na organização e na aplicação do sistema Dewey nos volumes do lugar, que era um escritório de advocacia com uma coleção de livros absurdamente grande. Muito desproporcional. O escritório em si tinha umas seis pessoas. Ficava em uma casa no Bela Vista, antiga e grande. Tinha um porão cheio de livros que foram levados para lá por todos os sócios e mais alguns que vieram junto com a compra da casa. Aparentemente, o brinde da compra da casa equivalia a oitenta por cento de toda a coleção, e ninguém sabia exatamente o que tinha lá. Eu entrava no porão todo dia de manhã, levando um lanche para a hora do almoço, e só saia de lá na hora de ir embora. E ninguém me via passar.
Depois de alguns dias nessa rotina, eu cheguei a uma caixa que só continha primeiras edições. Eu não sei como, em um porão úmido e sem a menor preocupação com a preservação dos volumes, eles estavam em tão bom estado. Era como se fosse ouro em uma caixa. Eu pensei mais de dez vezes sobre levar os livros embora. Eles não tinham a menor noção do que tinham ali. Era mais fácil do que tirar doce de criança. Era como comer o doce antes da criança saber que é dela. Eu ia praticamente prestar um serviço público levando essas primeiras edições para mãos que fossem cuidar dela corretamente. Era um dever que eu tinha com a cultura. Mas a culpa me consumia só de pensar no assunto. Naquele dia eu demorei mais que o normal para sair do porão. E quando eu sai, não havia mais ninguém no escritório.
Fui me tocar que era véspera de feriado só depois que eu vi tudo vazio. Testei todas as portas, para ver se alguma estava aberta. E depois comecei a testar as janelas. Achei uma cujo trinco estava quebrado, e não podia ser trancada a cadeado como eram as outras. Foi por ali que eu saí. Fui para casa pensando em como era fácil entrar lá. Ou sair com os volumes em uma ocasião similar. O celular tocou.
Ou, a gente tá aqui num bar perto da sua casa. Happy hour de todo mundo que não vai viajar porque tem que trabalhar na sexta. Passa aqui.
Mais uma vez em direção ao abate cruel da minha auto-estima. Deveriam fazer uma ONG contra a minha mania de socialização. Dá de dez a zero na crueldade do abate de vaquinhas. Se eu fosse um ser social eu não saberia falar cinco línguas fluentemente sem nunca ter saído do país. Aquela vaca não podia ter terminado comigo daquele jeito. Sem aviso prévio, nem nada. Simplesmente “as coisas não estão funcionando”, mais “não é você, sou eu” e a boa e velha “estou numa fase da minha vida na qual não sobra espaço para um relacionamento sério”. Desculpas esfarrapadas. Frases feitas. Deve ter visto algum manual na internet de como terminar sem dar um motivo concreto.
O bar estava mais vazio que o habitual. Muito provável que fosse porque as pessoas estavam indo viajar felizes para cidades a beira-mar. Aonde elas pudessem fritar à milanesa na areia, ao invés de assar lentamente dentro dos ônibus da capital.
Eu fui embora bêbado. Cambaleando e trocando as pernas pela rua, no melhor estilo clássico. As luzes da rua me lembravam filmes noir ruins. Eu esperava a qualquer momento tomar um tiro pelas costas de um sujeito com chapéu e sobretudo. E ele viraria para mim e diria “Jack, eu não posso dizer que não é pessoal, que é apenas negócios. Você não deveria ter se envolvido com a Linda, Jack. Não com a Linda”. E eu sentiria o sangue subir quente pela minha garganta enquanto eu ouvia essas palavras e escorregava pelos braços do meu parceiro na polícia. Tudo isso pensando, sem conseguir falar, que não era a Linda que eu amava, era a Rebecca. E depois a câmera se afastaria, abrindo um plano superior, enquanto um trovão ecoava imediatamente após um relâmpago. E a chuva começava a cair logo antes da tela ficar escura para sempre, e os créditos subirem com um jazz sujo ao fundo.
Eu abri a porta e encontrei um envelope no chão, como se tivesse sido passado por debaixo da porta. Dentro dele um número de telefone. Saquei meu celular e liguei para o número. Uma voz feminina atendeu. Um “alô” tímido, mas com um potencial de ternura imensurável. Falamos por horas. Ela sabia que eu ia ligar. Quem não ligaria? Desligamos quando o sol já estava alto no céu. Ela nunca me falou o nome. Mas me falou para ligar novamente, que iria me encontrar se eu quisesse, mas que ela não explicaria o motivo da carta por baixo da porta a não ser pessoalmente. Eu não teria aceitado isso se eu estivesse sóbrio. Acendi meu cigarro semanal e fumei pensando em como ela seria. Eu tinha todo o feriado pela frente, só não ia viajar por preguiça, ao contrário dos meus amigos condenados ao trabalho.
O corpo dela era como seda na minha pele. Tinha as mãos quentes. Eu sempre tive mãos geladas. Mãos de sushiman. Eu me sentia mal por ainda não saber nada sobre ela, apesar de três dias de esforço. Mas me sentia maravilhosamente bem com a mera presença dela. Ela parou em cima de mim. Me olhando com seus olhos azuis. Ficamos nos olhando pela eternidade mais curta que eu já havia sentido. Ela quebrou o silêncio quando viu que eu demonstrei intenção de começar a falar. “Eu não vou te falar nada. Nós não nos conheceríamos mesmo se falássemos por toda uma vida. Então, ao invés de passarmos a impressão errada um para o outro, não vamos passar impressão nenhuma. Não pense. Se esforce para não pensar sobre isso.”
Não existe “não pensar”. A comunicação e as impressões acontecem independentemente da fala, dos fatos. Pessoas julgam o mundo e classificam as coisas em padrões que fazem sentido para elas. Elas precisam chamar as coisas por algum nome. Mas eu não falei isso para ela. Nós concordamos em inventar nomes um para o outro, apesar de ela saber o meu. Ela sabia muito mais sobre mim. Eu a chamei de Helena. Por ela eu invadiria Tróia, ou compraria uma briga com toda a Grécia. Ela falou que, se fosse para ser grega, preferia ser Ariadne. E começou a me chamar de Teseu. “Sem contar a piada, que é horrível, mas que é fácil” “Que piada?” “Teseu, Tesão...” “Uma coisa eu sei, seu senso de humor não é muito apurado”.
Na segunda-feira eu voltei ao trabalho. Ariadne havia ido embora, prometeu que entraria em contato, que não era para eu procurá-la. Aquele número já havia sido descartado. Eu teria brigado, protestado, mas estava acabado demais por causa do sexo. Concordei, resignado com a situação, apenas para me arrepender depois. Deixei a caixa de primeira edições de lado. Incluiria ela por último na lista. Isso me daria tempo para acariciar minha quebra de moral por mais tempo. Trocar de opinião mais vezes. Além do que, Ariadne não saia da minha cabeça por nada. Eu almoçava naquele porão pensando nela. Eu abria caixas e caixas de livros pensando nela. Eu caminhava lentamente pelas ruas pensando nela. E toda vez que eu abria minha porta, eu esperava por um envelope no chão, com um número dentro.
Meu apartamento tinha apenas três cômodos pequenos. Uma cozinha, uma banheiro e um quarto. Pelo menos essa era a maneira que eu os havia denominado. Você, se preferir, poderia trocar o quarto por sala, sendo o primeiro lugar que se via quando se entrava nele. Tinha uma cama de solteiro e duas cadeiras, sendo que uma delas servia como criado mudo. Na cozinha havia um fogão e uma geladeira. Eu lavava roupa na pia, por falta de um tanquinho. O que não era tão incômodo, e me forçava a lavar a louça sempre que eu acabava de comer, e também a deixar a cozinha organizada. Dois hábitos adquiridos depois de vir para São Paulo. O banheiro possuía as coisas que um banheiro básico devem possuir: chuveiro, privada e pia. Nada mais. Eu havia recentemente colocado um lixinho e parado de usar a própria privada para estes fins. Minhas roupas ficavam penduradas em uma arara no quarto, com os sapatos embaixo e as meias e cuecas em caixas divididas por cores. Meus livros haviam sido todos vendidos para o sebo mais próximo da minha casa durante os dois meses que eu fiquei desempregado graças a demissão causada pelo fato de eu não conseguir sair da cama depois que a vaca foi embora. Pelo menos ela me fez parar de fumar. Não sobrava dinheiro para cigarro. Não parar, mas diminuir drasticamente ao menos.
O sábado chegou. E eu fiquei o dia e a noite inteira em casa esperando contato. Acendi dois cigarros. Eu não tinha fumado tanto desde que a vaca tinha ido. O domingo veio com o mesmo marasmo de sempre. E de repente era segunda. E de novo sexta. E eu andava pelo apartamento sem saber o que fazer. A campainha tocou. Irritante como sempre, mas linda dessa vez. Eu abri a porta. Vestido, com perfume. Eu ficava sempre perfumado para esperar. Era a vaca. Ela entrou pela porta, ignorando minha cara de espanto. Ficou no meio do quarto. Parada, mas continuamente se mexendo. Olhou para mim. “Isso foi um erro, eu vou embora”. E esperou. Esperou para que eu protestasse. Esperou que eu me jogasse de joelhos e negasse o erro. Esperou em vão. A cara de espanto fluiu pelo pequeno apartamento e se tornou a dela. Ela abaixou a cabeça e saiu. Parou na frente e olhou para trás. Não sei se fez menção de voltar. Não segurei a porta aberta para descobrir. Bati forte, como se estivesse batendo nos sentimentos que eu não entendia. Pedindo para que eles fossem embora junto com ela. E eles foram. E só sobrou indignação. Ela, a Ariadne. E eu saí. Bebi cerveja e cachaça. Ouvi samba. Gritei. Fui ridículo. Encontrei amigos e os envergonhei. Me senti vazio, como queria sentir.
Voltei para casa somente para não encontrar nenhum envelope no chão.
No outro dia comprei um caderno. Escrevi várias coisas, nada digno de nota. Escrevi sem me preocupar com línguas, expressando cada conceito, cada palavra, na língua que a fazia soar mais bonita. Um frankenstein linguístico. E conforme a noite se aproximava, eu me cansava de sentir dó de mim mesmo. Liguei para alguns amigos e fui procurar alguma coisa para fazer.
No lugar onde fomos as luzes piscavam e somente nesses momentos quebravam a escuridão. E ele estava cheio de mulheres. E eu conheci uma que me agradou. Era bonita e falava mais do que eu. O que é muito bom quando não se fala muito. E ela me beijou. E quando eu fui buscar uma cerveja, eu vi a Ariadne. Ela nem olhou para mim, mas eu sabia que era ela. Eu fui até ela e falei com ela. Ela fingiu que não me conhecia. Discutimos. Era ela. Tinha que ser ela. Ela falou que se chamava Verônica, não Ariadne. As amigas dela a tiraram de perto de mim. Me fizeram manter distância. A mulher que estava comigo antes viu tudo. Sumiu depois disso. Eu bebi mais. Arranjei uma briga. Voltei para casa com olho roxo para enfrentar o domingo.
Eu gostaria de falar que depois desse episódio eu esqueci a Ariadne. Ou a Verônica. Mas o pensamento só ficou mais forte na minha cabeça. Eu usava todo o meu tempo livre pensando em maneiras de encontra-la. Esperando avistar ela pelas ruas. Os meses se passaram. Eu havia levado as primeiras edições para casa como parte de um plano para encontra-la. Iria contratar um detetive. E precisava de dinheiro para isso. Estava trabalhando no escritório ainda. Estava agora trabalhando com os documentos de casos. Organizando as coisas para que eles achem casos similares com rapidez. Consegui o telefone de um detetive que trabalhava com casos de divórcio. O nome dele era Camilo.

domingo, 23 de maio de 2010

Walter

Walter olhou para o relógio esperando uma resposta que ele naturalmente não conseguiu. Não era na máquina que ele procurava essa resposta, e era apenas isso que o círculo na parede era. Os ponteiros que desciam não o levavam a lugar nenhum. A criança continuava sentada no canto da sala, brincando com um carrinho de metal. Como quatro anos poderiam ter se passado tão rápido? Na verdade, quase cinco.
O menino tinha batido na porta duas horas antes. Estava assustado e carregava um papel. Enquanto ele lia, pensava no quão cliché aquilo era. “Rodrigo, você é um homem difícil de achar. Principalmente porque esse nem é seu nome, né? Você podia ter me falado isso. Eu queria que seu filho tivesse o nome do pai. Mas acho que Rodrigo é tão bom quanto qualquer outro nome. Eu estou cansada e doente. Não posso mais cuidar dele. Eu torço para que você viva mais tempo que eu. Sabrina.” Depois disso ele falou para o menino sentar. Desde então, anda pela casa e olha para o relógio.
Pegou o computador e viu o saldo de sua conta e de suas aplicações. Depois, fez todas as contas para saber quanto o menino iria custar e quanto ele teria de renda sem nunca mais trabalhar. Pela segunda vez direcionou a voz para o menino. “Vem, eu tenho que me livrar de algumas coisas e você não pode ficar sozinho.” O menino levantou, obediente e assustado, e seguiu seu pai até a casa vizinha. “Beatriz, você pode cuidar do meu filho por uma hora?” “Desde quando você tem filho?” “Eu já volto. Você pode cuidar do meu filho?” “Estamos misteriosos?” “Sem gracinhas, e sem perguntas para o menino. Explico depois. Pode?” “Claro. Claro.”
O menino achou a casa feia. E por achar tão feia, seu olhar não parava. A mulher entendeu aquilo como interesse e passou a explicar o significado de tudo. A ligação que todos nós temos com a mãe terra e coisas que pareciam histórias infantis.
Seu pai voltou, mas eles ainda ficaram algum tempo na vizinha. Ele vendo TV, e o pai conversando na cozinha com a mulher. Depois, eles voltaram para casa e o pai perguntou se a mãe dele tinha dito como ele se chamava. O menino respondeu que sim. Então, o pai segurou seu rosto carinhosamente e disse para ele nunca mais chama-lo de Rodrigo. Rodrigo era só o menino. O pai era Walter. A partir de agora, para sempre Walter.

domingo, 7 de março de 2010

Verônica

Verônica não gostava de ser menina. Tinha que ficar limpa, educada, sorridente e simpática o tempo todo, e um pouco mais quando tinha visita. Enquanto isso, os meninos podiam se sujar, correr e se machucar à vontade. Até tomavam bronca depois, mas era isso que se esperava deles. Ninguém espera de um menino o comportamento que era esperado dela. E, quando um dos meninos se comportava bem, os outros meninos, e mesmo outros pais, achavam estranho. Mas nunca os pais da criança. Ficavam inconformados com toda a barbárie, quando até a própria Verônica sabia que eram simplesmente crianças.
Verônica cresceu e perdeu parte da vontade de ser menino. Sempre teve mais amigos do que amigas, mas gostava de não ser um deles. A atenção especial de ser diferente agradava a menina. E ela aprendeu rápido a usar essa atenção a seu favor. Uma atitude que sua mãe odiava. Seu pai, no entanto, encorajou enquanto esteve presente. Dizia que todos os talentos devem ser explorados, desenvolvidos. Nunca se sabe quando vamos precisa de um deles, não é, filha? Um infarto fulminante interrompeu os conselhos do pai quando ela ainda tinha 15 anos. Seu ódio pela mãe, ainda menos presente que o pai, cresceu, e quando ela tinha 20 anos, já não se falavam completamente.
A mãe de Verônica também não gostava de ser menina. Não pelos mesmos motivos que ela, mas pelo que significava ser menina na época em que havia crescido. Hoje, ela adorava ser menina, principalmente do jeito dela. Dava um sabor especial em todas as conquistas da vida, por menores que fossem. Acabou dando uma amargura especial quando a filha desapareceu depois de diversas brigas. E o mundo quase ruiu quando foi identificada a ossada dentro de um carro queimado não-identificado.
Verônica gostava de brincar. Muitas vezes, brincava mais do que devia. Vivia num mundo verde e fantasioso, onde podia tudo. O dinheiro comprava sua inocência e sua pureza. Cresceu livre e amoral. Forte e insana.

Da leveza do amor tranquilo

Ela me disse: eu quero a leveza de um amor tranquilo. Amor fácil, meu bem, é para quem tem dificuldade de amar. Para quem encontra no outr...