quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Camilo

Que se comporte como uma cadela, mas que não perca seus traços angelicais. E ele não estava fazendo uma concessão. Esse era o ideal. Eu falei pra ele que já tinha ouvido isso em algum lugar. Ele tomou mais um gole de cerveja e respondeu “Provavelmente”. Acendeu um cigarro e passamos mais alguns minutos em silêncio, admirando as mulheres que passavam na calçada onde nossas mesas estavam colocadas aquela tarde. Algumas andavam como se tivessem algum lugar para chegar, vestidas com terninhos e sapatos de salto alto e bico fino. Outras andavam como se já tivessem chegado aonde queriam, olhando os prédios da avenida paulista e procurando algum olhar empático nos transeuntes. Bastantes delas estavam no meio termo. Algumas ainda olhavam para baixo e andavam a meia velocidade, como se tivessem que decidir alguma coisa antes de chegar ao seus destinos e precisassem de um pouco mais de tempo. Eu olhei para meu companheiro de vagabundagem e percebi que apesar dos seus olhos estarem acompanhando os corpos que passavam, sua mente fixava-se em apenas um. “Você ainda não está completamente recuperado, né?” “Nem quero estar. Quero que a cicatriz fique, pra eu sempre poder lembrar” Eu dei um sorriso com o canto da boca e joguei meus olhos para o lado oposto ao dele. Ele entendeu. “Eu não posso ser sentimental?” “Pode, apesar de não combinar com seu jeito, mas ao menos seja original.” “Pra mim isso é novo, qualquer coisa é original”. Ambos trabalhávamos sob encomenda, em mercados diferentes, mas os dois mercados andavam fracos e isso dava tempo pra ficar bebendo cerveja na rua de tarde em um dia de semana. Eu me especializara em conseguir provas de adultério para maridos e esposas ciumentas. Ele em resolver problemas à moda antiga. Aprendi a não julgar as pessoas, mas admito que eu demorei um tempo para me acostumar com a idéia de conhecer uma pessoa assim. Não falávamos sobre trabalho, da minha parte era falta de decoro, da parte dele poderia manda-lo pra cadeira elétrica se ele morasse no Texas, um comentário que ele mesmo havia feito. Ele virou a cerveja, se levantou decidido e deixou uma grana em cima da mesa. Me olhou em confirmação ao valor e eu acenei que sim. Ele saiu andando, sem falar nada. Eu acendi um cigarro e olhei para o céu. Azul. Muito azul. Meu celular tocou. “Camilo falando” Silêncio do outro lado por um tempo. Eu já estava acostumado. As pessoas sempre pensam duas vezes antes de me contratar de fato. Pensam se elas querem realmente saber. Confiro a tela do celular pra ver se ainda há alguem na linha. Desligou. Que se comporte como uma cadela, mas que não perca seus traços angelicais. É, ele realmente tinha exatamente isso. Mesmo com toda a droga ela conseguia manter os traços angelicais. O telefone toca de novo. “Eu quero que você descubra se minha mãe está vendo alguem.” A voz era feminina. “Certo, me encontre no meu escritório, rua...” “Eu sei onde é” “Certo, estarei lá em meia hora” “Estarei esperando”.
Ela achava que a mãe dela estava vendo um garoto de programa. E achava que o garoto de programa na verdade queria dar um golpe do baú. Alias, ela disse que tinha certeza, mas que precisava de provas. Precisava convencer a família. Estava preocupada com a mãe. Na minha opinião ela estava preocupada com a herança. Mas eu aprendi a não julgar as pessoas. O nome dela era Vivian. A mãe se chamava Marta.
No mesmo dia eu comecei meu trabalho. Fui até onde a mãe dela trabalhava. Lugar chique, endereço chique. Era uma figurona de alguma empresa. O marido tinha morrido de um ataque do coração. Stress. Era o responsável latino-americano de uma multinacional. Ela já era rica quando eles se conheceram. Muito dinheiro envolvido realmente. Ela dispensou os seguranças quando saiu do prédio. Entrou num carro sozinha e dirigiu até um motel. Muito fácil. Principalmente porque eu já conhecia a menina que ficava na portaria do hotel, caso antigo que já tinha me poupado muito trabalho. Entrei, tirei as fotos de uma janela no teto, sai. Tudo resolvido. No outro dia eu fiz um doce, pro trabalho não parecer fácil demais. Depois eu entreguei as fotos pra menina e fui pro bar achando que tudo já tinha acabado.
Uma semana depois um babaca me procurou. Perguntou das fotos, da Marta, da Vivian. Foi depois dessas que eu reconheci o sujeito. O michê que tava fazendo a Dona Marta. O cara tava desesperado. Chorou no meu escritório. Por incrível que pareça ele tava fazendo a filha também. E não era realmente garoto de programa, num batia ponto nem nada, mas é tudo igual. Eu aprendi a não julgar as pessoas. Ele foi embora cabisbaixo e eu nunca mais ouvi falar dele. Três meses depois a Vivian foi dada como desaparecida. Um caso muito estranho. Eu só vi porque meu companheiro de vagabundagem acabou deixando o jornal aberto na página da notícia numa tarde dessas de bar quando ele foi atender um telefonema. O cara começou a namorar uma puta. Se comportava como uma cadela mas, como ele, já não tinha nenhum traço angelical. Tudo muito estranho, mas bem, eu aprendi a não julgar as pessoas.

Um comentário:

Unknown disse...

quotar na moral:

"Ambos trabalhávamos sob encomenda, em mercados diferentes, mas os dois mercados andavam fracos e isso dava tempo pra ficar bebendo cerveja na rua de tarde em um dia de semana"

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