O lugar chamava Beco. Beco 203. Originalmente porque o lugar
ficava em Porto Alegre. Acho que em um beco. No número 203. Em São Paulo era o
número 609. 203 vezes 3. Fazia sentido estar lá. Como, de uma maneira engraçada,
tudo do Rio Grande do Sul sempre fez sentido para mim. Desde o colegial com as
bandas de rock independente e a atitude rock n´ roll.
Ok, talvez eu que não tenha crescido. Mas o que importa é
que eu estava lá. Vulnerável. Talvez mais vulnerável que nunca. Não foi culpa
dela, ela não sabia. Mas ela era tudo que minha vulnerabilidade pedia. Um
padrão. Uma desculpa. Ela era o metro original. Tipo a distância do dedão até o
nariz do rei que criou o metro. Tudo que eu esperava de alguém. Ela era tudo
que eu esperava que alguém fosse.
Naturalmente isso não apareceu à primeira vista. Me nego a
acreditar em amor a primeira vista. Uma babaquice sem tamanho. Mesmo para um
cara imaginativo como eu. Um cara que se apaixona pela ideia. Um cara que se
apaixona pelo potencial mais que pelo fato. Porque o fato sempre está além do
que você pode conseguir em pouco tempo. O fato está no relacionamento. Na
vivência. E ainda assim, eu me conheço bem o suficiente para saber que até a
minha vivência muda depois de um tempo. Então porque a de qualquer outra pessoa
não mudaria? Ainda assim, é gostoso se enganar.
Ela estava com pessoas. Amigas e amigos. Bem, eu descobri
que eram só amigos depois, mas a percepção na primeira hora sempre é
pessimista. Eu não vou falar com ela. Se eu perder a chance, não era para ser.
Destino. Sorte. A gente tem que se segurar em alguma coisa.
Eu também estava com alguns amigos. Um deles não era
exatamente o melhor wingman de todos os tempos. O exato oposto, inclusive. Ir
com ele até lá me garantiria uma rejeição por contexto. Explico: uma rejeição
por contexto é quando as amigas levam a mulher embora. Você não tomou um fora
dela. Você tomou um fora do ambiente. Pode até ser um pedido de socorro dela. O
que não conta. E normalmente é identificável. Nem que seja no olhar de
desespero da mulher.
A noite continuou. Ela deu o telefone para alguém. Estava
sozinha. “Oi”. A conversa seguiu natural. Confortável. Tão confortável que eu
falei muito mais do que devia. Segredos que eu não conto fácil. Segredos que
alguns dos meus melhores amigos não sabem. Coisas que não estão nem nesse
livro. Intimidades reservadas a situações especiais. Vergonhosas e
libertadoras.
“Esse é meu telefone mesmo, pode ligar para ver.” Não era
necessário. A manhã tinha chegado e com ela o fim do meu tempo com a Daniela.
“Sabe? Eu terminei com o meu namorado faz pouco tempo.” Eu também, ela ficou
sabendo. Mas meu relacionamento terminou melhor terminado. Espero que isso faça
sentido.
Depois disso as conversas reforçaram minhas percepções. Inteligente,
legal. Eu poderia passar o dia fazendo elogios, mas não ia levar a nada. Não
levaram a nada. Mentira, nós fomos para o mesmo lugar uma vez. Não chegou a ser
um encontro. Ela foi com amigas. Eu arrastei um amigo. Mal falei com ela. Duas
frases. Parecia que ela fugia de mim. Quase que com medo. Para um cara tímido
como eu, isso garantiu uma dor de consciência sem tamanho. Que resultou em uma
mensagem pelo facebook. Uma mensagem que seria agressiva não fosse minha
incapacidade de esquecer a existência dela. Talvez fosse melhor assim.
Os meses passaram. A existência dela me incomodava. Não no
mal sentido. No melhor sentido possível. Era bom sentir aquele incômodo. Sentir
a vida, as possibilidades. Parece pouco. Mas me fez sentir como se eu estivesse
anestesiado fazia anos. Vacinado contra impulsividades. Isso tinha um valor
incalculável. Era quase novo. Mesmo depois de tudo isso. De todas elas.
Mas, se até casamentos esfriam, uma relação quase sem nenhum
contato não tinha a menor esperança. Era como se eu estivesse na China. Melhor,
como se ela estivesse na China. Eu continuava em São Paulo. O que importa é que
na mesma cidade que eu haviam várias mulheres. Mais do que nunca. Elas me
mantiveram ocupado. São. Mas por mais que meu interesse secundário sempre
mudasse, pulasse de uma mulher para outra, ela era meu metro original. Todas
eram medidas em relação a ela. Daniela.
Fica fácil ver porque nenhuma chegava onde a Daniela tinha
chegado. A Daniela era uma ideia, mais que uma mulher. E ideias são perfeitas.
Não tem como competir. Isso me ajudou muito. A promessa de que ela de fato ia
atravessar o Atlântico para estudar, ainda mais. “Eu namoraria essa mulher. Mas
ela vai embora. Melhor assim.”
Ela não foi. Mas continuou sendo apenas uma ideia. Não havia
nada que eu pudesse fazer. O sentimento de impotência tão familiar. Sempre tão
difícil de lidar. De qualquer maneira, ela não foi ainda. Continua aqui, mas é
como se estivesse lá. Longe de mim muito mais do que os 5 ou 10 quilômetros que
de fato nos separam durante nossas conversas.
Só me sobram cigarros e cervejas. Álcool e boemia. A
tentativa de encontrar outra personificação das minhas ideias. Dos meus
desejos. A busca eterna por aquilo que vai me transformar por fim em um homem
sério. Mesmo sabendo que essa busca deveria ser dentro de mim. Não dentro de
lugares artificialmente esfumaçados. Com músicas escolhidas a dedo para manter
uma animação artificial. Onde todos fingem que só querem ser eles mesmos. Mas
na falta de opções melhores, quem sabe? Quem sabe?