1.
Toda noite na Funhouse se parece um pouco. As músicas são
seguras. Não impressionam, mas são irreprimíveis. As bebidas tem um preço
justo. As pessoas parecem sempre as mesmas, e algumas vezes de fato são. A
Funhouse é um sofá fofo no meio da minha zona de conforto. Com uma TV na
frente.
Era sábado e não iria ser diferente. Deixei meu espírito
aventureiro trancado no banheiro – amordaçado, para não atrapalhar os vizinhos
– e fui encontrar meus amigos na Funhouse. Era um sábado frio de começo de
outono. Em São Paulo, isso quer dizer que você acha que dá para sair de
camiseta sem problema, “dentro vai estar quentinho”, mas toma um tapa na cara
do vento frio no final da noite.
Eu tenho um amigo, o Sacha, que trabalha no mercado
financeiro. Não consigo explicar exatamente, mas tem a ver com operações de
imóveis e hipotecas ou alguma coisa assim. Ao contrário de mim, ele é um cara
que espera mais da noite. E ao contrário de mim, ele está disposto a arriscar
uma noite ruim por um retorno maior. Isso quer dizer que ele vai em lugares que
não vão ser tão divertidos por si só, em busca da possibilidade de alguma coisa
dar certo. Eu poderia até falar, sem forçar a barra, que ele vai em busca da
mulher perfeita. Umas das diferenças e um dos motivos pelo qual eu não saio da
minha zona de conforto é que eu acho que a mulher perfeita para mim vai estar
lá. Dentro da minha zona de conforto. De preferência aconchegada com um edredom
vendo um filme do Woody Allen. Porque, para mim, beleza sempre foi uma coisa
que eu tratei como secundário. É eliminatório, mas não é classificatório. Eu
não me interessaria por alguém que não me atrai fisicamente, mas nunca saí à
caça de Helena de Tróia. Enquanto para o Sacha, beleza é um fator
classificatório. Ele está disposto a agüentar divergências que eu não estaria,
só porque a mulher poderia ser a razão do divórcio do Brad Pitt com a Angelina
Jolie. (Eu queria colocar um casal mais novo e hypado, mas não conheço.
Seja co-autor, substitua os nomes em negrito pelo casal hypado do momento.)
Esse amigo estava comigo. Assim como outros amigos. Entre
eles, um cara que eu mal conhecia. Novo em São Paulo e com falta de companhia,
ele foi meio perdido para lá. Me conheceu na semana anterior, perguntou onde eu
ia e foi junto.
Tudo corria de maneira satisfatória e sem percalços. O som
era o esperado, as pessoas que eu tinha visto eram as esperadas, a bebida fazia
efeito e o vento frio me lembrava que eu deveria ter trazido algum agasalho
comigo enquanto eu fumava. O que para mim era um sábado a noite como qualquer
outro, no entanto, era bastante desmotivador para o Sacha. “Não tem mulher
nessa merda” eram as palavras que faziam meu senso de anfitrião bufar.
Anfitrião porque a Funhouse era o chalézinho nas montanhas da minha zona de
conforto. Acabei o cigarro, dei um sermão sobre como ele estava pré-disposto a
não ver as mulheres que de fato existiam no lugar, acho que literalmente peguei
ele pela mão ou pelo pulso e carreguei o rapaz para a entrada da pista.
Eram mais ou menos 3h da manhã e meu plano era sofrer um
blecaute alcoólico lá pelas 5h30. Esse plano também ia a contento, apesar de um
pouco a frente no cronograma.
“Olha, Sacha, vamos começar ali pelo DJ. Naquele grupo, tem
uma gata. No grupo atrás, tem duas, apesar de uma estar acompanhada. Eu acho.
Tem aquelas duas ali que tão meio cercadas, mas você é mestre em romper esse
problema. Juro, acho engraçado até hoje essa mania de roqueiro de ficar
pastorando as minas que eles querem. Mais ali no fundo, mesmo sem conseguir
julgar porque não dá para ver direito, tem umas quatro. Umas dela deve ser gata
para você. Sempre lembrando, a concorrência aqui não é tão alta. E olha, tem
esse grupo aqui na frente.”
Pane número um. Nuvens se formam na fronteira da minha zona
de conforto.
Ela estava de branco. Alta, quando comparada com as outras
mulheres em volta. Alta o suficiente para se destacar. De branco o suficiente
para brilhar na luz como uma benção no inferninho que me era tão querido. Os
dois montes formados pelos ossos da bochecha dela emolduravam olhos que eu,
naturalmente, não conseguia ver a cor, mas que eu tinha certeza que era cor de
hipnose. O corpo era exatamente o que eu queria ter nos meus braços desde que
eu me toquei que meus braços serviam também para abraçar. Por um momento, o
adolescente espinhento e desengonçado que destruía rodinhas de verdade e
consequência quando era chamado pelos amigos para se juntar a elas – as meninas
saiam da roda, algumas correndo – dominou o meu cérebro. Eu não sou mais esse
cara, o fim da puberdade me fez bem, mas naquela hora eu senti os fios da minha
barba ficarem esparsos. Eu tinha 14 anos de novo, e um bigode de pedreiro que
minha mãe não deixava eu tirar.
A diferença entre o garoto tímido de 14 anos e eu, naquele
momento, era a quantidade de álcool no sangue. Ah, quantas coisas erradas eu
teria feito com 14 anos se eu já tivesse aprendido a torturar meu superego
afogando ele em vodka. Eu conseguia sentir meu Id esquecer de tirar a cabeça do
superego da bacia para respirar enquanto babava na mulher na minha frente. Ao
invés da paralisia natural que ocorre, quando minha timidez segura minhas
vontades no chão com um mata-leão, eu tinha um Id gritando comigo.
“Então, Sacha, e ali está a mulher mais bonita da noite. A
mulher que ninguém aqui tem capacidade de conseguir. Ali está a mulher que,
sinceramente, nem deveria estar aqui. A Funhouse não foi feita para mulheres
tão bonitas”
O Sacha riu, concordou, saiu e eu continuei minha linha de
argumentação. O mundo não tinha sido feito para mulheres tão bonitas. Não o
mundo real, onde as pessoas tem que pegar ônibus lotado e trabalhar e suar no
sol do meio dia em restaurantes por kilo cheios e sem ar condicionado. Não esse
lugar barulhento e cruel, com mendigos pedindo dinheiro e comida e álcool nas
esquinas. Onde os trens se atrasam e pessoas são empurradas para dentro e que
quando abrem parecem a versão ferroviária de um fusca de palhaços. Com chefes
resmungando sobre atrasos e produtividade. Esse lugar no qual as mulheres
perdem almoços para se depilar e fazer a unha. Salários inteiros gastos em
cortes de cabelo e cremes e sapatos e vestidos e bijouterias e maquiagens
excessivas para cobrir marcas no rosto. Onde as pessoas envelhecem e se
acomodam em sofás fofos no meio das suas zonas de conforto vendo Domingão do
Faustão enquanto comem macarronada e reclamam passivamente do governo durante
os intervalos. Ela pertencia a outro lugar.
Eu não gosto do mundo real, por isso me escondo em ficção.
Mas eu tenho simpatia por esse pessoal que está aqui comigo. Não concordo com
tudo que eles fazem, mas entendo que às vezes a inércia é mais forte. Por que
as mulheres desse mundo não podem ter tanta beleza? Uma coisa é você tentar
concorrer com capas de revista e atrizes de novela, pelo menos elas não são
reais. Outra coisa diferente e essa mulher ter a audácia de descer ao
purgatório e andar por aí acabando com a chance das outras de encontrar amor.
Pessoas bonitas que como um filme adolescente americano comandam a vida da
peble sob suas coroas de reis e rainhas do baile. The beutiful people. It’s all about the size of
your steeple. Marylin Manson falou isso. E eu entendi errado. Não vou
entrar no detalhe do erro, mas tinha a ver com steeple soar como cheekbone se
gritado por cima de um muro de distorção e bateria.
Bem, mas não cabia a mim fazer nada sobre isso. Ia me
recolher a minha insignificância. Abraçar minha condição de peble e cantar
Marylin Manson junto com meus amigos excluídos. Meu povo. Punks, metaleiros,
rockers, mods. Com suas peles tatuadas, suas barbas desgrenhadas, seus cabelos
raspados e coloridos, suas orelhas alargadas, sua agressividade e sua beleza
que não dependem de natureza, mas de atitude e inteligência. Sair para fumar
mais um cigarro enquanto eu me arrependia de não ter trazido minha jaqueta de couro
para me proteger do vento e pensar sobre um coturno pro próximo inverno, que o
All-Star já tá rasgando e não esquenta nada.
Mas ela não saia da minha cabeça. Me incomodava. Alguém
tinha que fazer alguma coisa sobre ela. Dizer para ela isso. Que ninguém precisa
de tanta beleza. Eis que meu Id percebe que esqueceu a injeção de adrenalina em
casa e o coração do superego não vai sobreviver à tortura. Minha timidez
desmaia por falta de ar graças ao mata-leão da minha vontade. O garoto de 14
anos está livre para fazer as besteiras que ele sempre quis.
Pane número dois. As nuvens ficam escuras e o calor
aconchegante da minha zona de conforto começa a gerar uma zona de baixa
pressão.
Eu ando até ela, mesmo ela estando cercada de pessoas. Não
pretendo ficar muito, o olhar de reprovação que eu antecipo vai ser toda a
adrenalina que meu superego precisa para se vingar do meu Id. Entro no meio da
roda, sou inconveniente com todas as pessoas ali. Mal percebo o rosto delas. E
falo que tem uma música do Marylin Manson que diz tais palavras. Eu erro a
letra. Percebo que no fundo, por causa da letra errada, as palavras não fazem
sentido. Me preparo para sair dali com o rabo entre as pernas ao menor sinal de
ter sido pentelho, e eu sabia que eu tinha sido pentelho.
Um sorriso. “Desculpa, não entendi”. Repito. “Não conheço
muito Marylin Manson. Mas porque você diz isso?” Sorrisos. Simpatia. Gritante.
Pane número três. Minha zona de conforto recebe os primeiros
avisos para se preparar para um furacão.
Eu saio do meio da roda. Cavo um buraco ao lado dela. Já nem
quero mais falar o que eu vim falar. Já nem sei o que eu estou fazendo. Faço
tudo pela inércia de já ter começado a fazer. Já não entendo mais nada. Minhas
ideias param de dançar ciranda e começam a bater as cabeças na parede não
acolchoada do meu crânio. Acabo atrás dela. Não queria atrapalhar a roda. Nunca
pertenci àquela roda. Meu lugar era atrás mesmo. Entre todas as outras pessoas
se acotovelando ao som de um riff.
Não consigo me explicar direito. Ela continua simpática.
Falo que o motivo inicial de eu ter ido ali era porque ela era mais bonita do
que qualquer outra pessoa daquele lugar. O que é verdade. Eu volto a ter 27
anos. Eu enxergo a pessoa. Em toda a insegurança dela. Porque ela se nega a
aceitar o que, agora, era só um elogio sincero. Completamente sincero e sem
segundas intenções. Eu nem esperava estar ali mais. Imagina ter alguma intenção
reservada para um segundo momento. Mudamos de assunto. Ela é gente boa, gentil.
Eu insisto que não faço elogios. Morro de medo deles. Além do mais, eles
estavam se provando descartáveis. Fazia tempo que não precisava deles. Tinha
até escrito um texto sobre eles. Sobre ter medo deles. Depois, se ela quisesse,
até mostraria para ela.
“Becky, a gente vai sair da pista. Você vem?”
“Não”
“Não”
Pane número qualquer. O furacão jogou meu chalézinho
montanha abaixo. Vacas atingem sofás em um redemoinho aéreo molhado de chuva.
Ela ficou na pista. Sozinha. Comigo.
Ela faz jornalismo, tem 19 anos. Eu brinco com a idade. Sou
bem mais velho, afinal. Ela até gosta do que tava tocando, mas gostava mesmo
era de Rihanna. Eu pronuncio o nome da mulher errado. Rirrana. Ela me corrige.
Fala que gosta também de Lana Del Rey. Eu prometo escutar. Nunca tinha dado
muitas chances para a cantora. Tinha ouvido pouco bem das pessoas certas, mas
as pessoas erradas tinham falado muito mal. Sempre é um bom sinal para achar
boa música. Eu percebo que algumas horas ela não me entende. Me lembro que eu
estou completamente bêbado. Não quero mais estar bêbado. Ela ficou na pista
comigo. Eu não quero estragar a segunda intenção que agora pula na minha cara.
Tento um beijo. O que é claramente uma opção ótima quando você mal consegue se
comunicar. Para um bêbado, parece, pelo menos. Não acontece. Óbvio. Conversamos
mais um pouco e ela me chama para sair da pista. Mais fácil conversar no
lounge.
A internet no lounge funciona. Na pista nem tanto. Ela me dá
o celular e eu procuro o texto que eu tinha falado nele. No meu blog. O rapaz
novo que eu tinha conhecido na semana anterior me vê. Pega uma bebida enquanto
fala “Eu tenho mais de mil reais para gastar hoje com álcool. Pede o que você
quiser.” Mas eu não quero ficar bêbado. Eu quero ela. Enquanto ela lê, sou
arrastado até o bar e relutantemente bebo um copo de alguma coisa flamejante.
Eu volto. Ela acabou de ler. Gostou do texto. Aceita o
elogio agora. Mais um tempo se passa e nós nos beijamos.
Blecaute. Minha zona de conforto já não parece existir. O
caos que se instaurou parece que irá dominar até o fim dos tempos. Minha zona
de conforto é Mordor e Sauron tem o um anel.
Paramos frequentemente para conversar. Conversar com ela é
ótimo. Tem um ex dela na balada. Na hora, eu penso que talvez seja melhor não
ficar tão perto, mas o cara parece tranqüilo. Apesar de eu não entender como
alguém pode ficar tranqüilo sendo ex dela e vendo ela comigo. Será que era
porque eu claramente não era uma ameaça de longo prazo?
O lugar esvazia. A conversa continua cheia. Interessante.
Natural. Ela me diz que não costuma ir para casa tão cedo. Eu ofereço a minha.
A gente pode beber uma cerveja e continuar conversando, ouvindo música. Quem
sabe ela me apresenta Lana Del Rey direito. A Rirrana eu já conhecia. Ela me
corrige de novo. Rihanna. Mas diz que não. Que tal o posto? Aqui na frente
mesmo. O posto tudo bem. Pagamos. Saímos. Era uma noite fria de começo de
outono. Dessas que parece que dá para sair de camiseta mas que te estapeia na
cara quando você põe o nariz na rua às 5h00 da manhã. Depois de uma cerveja
tremida no posto, ela concorda em ir para minha casa. É quente e eu prometo que
sou seguro. Helena vai a Tróia.
Ela me mostra Lana. Ela me mostra coisas da faculdade. Eu
mostro o que eu faço. Beijos. Os olhos são verde-hipnose. A boca é além de
metáforas. São 9h e eu não quero que ela vá embora. Eu estou sóbrio. A
adrenalina de cada momento expurgou o álcool do meu sangue. Eu levo ela embora.
Devolvo Helena de Tróia à Grécia e me sinto um Páris fracassado.
Relatório de danos: minha zona de conforto é agora um
cenário de filme pós-apocalíptico.
2.
Assim que eu fiquei solteiro, quase um ano antes de conhecer
a Becky, eu descobri que conhecer gente é mais fácil na faculdade, escola ou
qualquer lugar que você freqüente do gênero. Eu só trabalhava. E depois, nem
isso. Aí eu descobri que pegar alguém na balada não significa que a pessoa vai
te manter na vida dela. Sair em outra ocasião foi se tornando um evento cada
vez mais raro. Na minha cabeça, se a pessoa ficou com você a noite inteira, ela
vai querer ficar com você mais um pouco outro dia. Imagina quando a pessoa
transa com você e passa a noite na sua casa. Apesar de a segunda ocasião de
fato gerar mais segundos encontros, a minha percepção estava completamente
errada. Como a Rebecca não tinha dormido comigo, minhas esperanças de ver ela
de novo eram parcas. Principalmente porque eu ainda estava maravilhado com a
mulher e ter o que se quer é reservado para um tipo de pessoas à qual eu não
pertenço. Não nesse caso.
Mas a gente começou a conversar bastante, para meu espanto.
Várias vezes eu senti que, apesar de não ter rolado, havia a vontade. Tudo que
eu preciso é de vontade. Contanto que eu reconheça isso, o resto é secundário. A
existência dela me incomodava ainda. Mas já não era ruim. Era bom ter a
lembrança. Era bom alimentar a esperança. Um bom tempo se passou assim até que
eu fui informado do rapaz que detinha o monopólio da atenção dela. Por algum
motivo, aquilo me parecia um percalço aceitável. Mas a verdade era que eu era
um cidadão de segunda classe no coração da Rebecca. E ela me contou isso porque
o rapaz voltara à vida dela. Meu lugar era no gueto. Mas conversar com ela era
legal, então eu fiquei por ali mesmo. Vivendo de migalhas.
Acho engraçado que ela não era o estilo de mulher que eu
normalmente me interessava. Música é um assunto importante para mim. E ela
gostava de coisas boas. Mas também gostava de um monte de coisa que eu não
escutava. E que mesmo depois de escutar, eu decidi continuar não escutando. Isso
deveria ter sido um sinal para eu parar. Mas passamos madrugadas conversando e
trocando músicas. Nem sempre coisas sérias. A maior parte das vezes, inclusive,
não eram coisas sérias. Mas ela, ao contrário do que eu esperaria de alguém que
ouve o que ela ouve, falava daquilo com a paixão de quem realmente se importa
com aquilo. E isso para mim era suficiente. Porque era aquilo que eu me
importava, na verdade. Acho ruim quando a pessoa não liga, não se sente tocada
por música. É uma parte essencial da minha vida. Espero que seja essencial na
vida das pessoas que eu quero mais próximas a mim. E mesmo discordando, eu
passei a respeitar o gosto dela.
Sei que parece que eu faço muitas desculpas para a situação.
Mas é que ela era diferente de todas as outras mulheres na minha vida. Eu
tentava justificar isso para mim. Para as pessoas que se surpreendiam com
minhas descrições quando eu falava dela. Porque, sim, ela era linda, mas era
muito mais que isso. Tanto que isso se tornou secundário. Do jeito que deveria
ter sido. Eu gostava da pessoa. Era esse o “eu” que eu conhecia. Mas a pessoa
era diferente. E eu me peguei sorrindo enquanto ouvia sobre coisas que
levantariam minha sobrancelha. Novos mundos se apresentavam. Mundos que eu
tinha escolhido ignorar.
O aniversário dela estava chegando. Eu não dou presentes
para pessoas nos aniversários delas, então não estava preocupado com isso. Mas
em uma conversa sobre filmes eu comentei sobre Todos os homens do presidente.
Um filme genial sobre o escândalo de Watergate. Como dois jornalistas
derrubaram o presidente dos EUA. Ela nunca tinha visto. Conhecia a história,
mas nunca tinha visto o filme. Eu comprei para ela. De aniversário. Mas eu nem
fui no aniversário dela. Não fui exatamente convidado e não faço o tipo que
aparece nos lugares. Ofereci deixar o DVD na casa dela, e ela se recusou. “Você
não é entregador do Submarino.” Disse que ia se sentir mal se não me desse pelo
menos um abraço. Eu esperei. Tudo que eu podia fazer era esperar.
“Tenho uma notícia para te dar. Vou esperar para confirmar,
mas acho que vai rolar.”
Passei um tempo perguntando o que era. Ela demorou para
confirmar, queria ter certeza, depois queria escrever um negócio. Começou um
blog. Escreveu o texto e me mandou o link. Fez isso depois de um bom tempo.
Nunca confirmei se a notícia era o que o texto descrevia. Linhas tristes sobre
decepção. Alguns monopólios não funcionam. O do coração dela foi mal
administrado. Mais alguns convites e finalmente ela concordou em sair comigo.
Mas a minha auto-estima sofre com meio-fio. Fica largada na
sarjeta mesmo. Na época, eu via outra mulher. As coisas andavam bem. Eu gostava
dela. Ela me convidou para fazer um programa no sábado. No mesmo dia, eu tinha
a despedida de um amigo. Fiquei de confirmar depois da despedida, o amigo era
importante. Apesar de todos os “sim, eu VOU te ver, Douglas”, eu continuava
inseguro. E continuava segurando a outra mulher. Sem confirmar e sem cancelar a
noite. Não queria ficar sozinho depois de sair do bar. Não me senti bem com
aquilo, mas prioridades primeiro. E o bastãozinho da vez estava com a Rebecca.
Ela me avisou onde estava, falou para eu ir encontrar ela. A outra moça
entendeu que eu ia ficar no bar com os amigos. Nunca desmenti. Me despedi,
entrei ébrio no táxi e dei as coordenadas.
Ela estava sentada sozinha em uma mesa do Mc Donalds. Mais
conversa, mais música, mais verde hipnotizante. Foram 3 meses do primeiro dia
até aquele. Eu tinha esquecido a voz dela. Eu descobri ali o quanto eu senti
falta da voz dela. Esse negócio das pessoas não falarem mais ao telefone tem
desvantagens sérias. Quando eu escrevi um texto sobre ela, eu esqueci a cor dos
olhos. Fui de verde porque verde era o que eu lembrava, mas quem confiaria na
memória de um bêbado. Pedi desculpas pelo erro quando mostrei o texto para ela,
fazia sentido na hora que fossem verdes. Ela me lembrou, em maiúsculas
garrafais que os olhos dela eram verdes. Depois de ver naquele dia, dentro do
ambiente calculadamente pouco confortável do Mc Donalds, eu nunca mais vou
esquecer que eles são verdes.
Saímos de lá quase sem rumo. Na falta de ideia melhor, fomos
à Funhouse mesmo. Eu acho que disse que amava ela. Culpa do álcool. Isso depois
de já termos ficado. Passamos a noite conversando e bebendo no bar. Fomos para
a pista para uma música só. I saw her standing there. Deixei ela em casa em um
horário até razoável. De táxi, dessa vez. Mas fui até a casa dela com ela,
mesmo não sendo caminho.
Eu esqueci de levar o DVD. Antes disso, eu pensei em
desistir. Cansado. Não via que ia rolar. Segurei a onda porque queria entregar
o DVD. Comentei com ela um dia. Ela riu. Falou que era um sinal para eu não
desistir. Bem, eu continuei. Duas semanas depois de sair com ela, ou três, ela
manda uma mensagem para mim. Eu estava bêbado, na balada. Um mero “ow”.
Respondo. Ela pergunta se eu não quero ir entregar o DVD. Pago imediatamente,
pego um táxi, passo em casa, pego o DVD e vou para a casa dela. Sempre com medo
de ela dormir no meio tempo. Com medo de ser só entregar o DVD e ganhar um
abraço. Medo. Porque eu ainda sentia que eu ia acordar na cama a qualquer
momento.
Ela estava com alguns amigos. Acabei ficando na casa dela
até o meio-dia. Com ela. Abraçado. Ficaria mais. Ficaria o tempo que ela
quisesse. Senti, de fato, que eu pertencia. Com ela nos meus braços, parecia
que ela pertencia a eles. Com ela, eu sentia que aquela era a pessoa que
deveria estar ali. Mais, eu sentia que ela se sentia confortável ali. Saí de lá
o dono do mundo. Sem dúvidas. Tudo estava certo com o universo. Já me acostumei
que essa sensação não dura, mas é ótima. Temporariamente preencher o buraco, já
dizia o A Perfect Circle. A partir dali, eu achei que as coisas fossem andar.
Mas elas não andaram. Elas pararam, engataram a ré e quase
fundiram o motor acelerando. Já esperara mais do que o tempo que demorava, mas
eu sentia que a cada dia eu perdia espaço. Eu sentia que o fim do encanto dela
por mim, por menor que tenha sido, estava perto do fim. Me senti de volta no
gueto. Cidadão de segunda classe. Incapaz de mudar meu próprio destino. Vivendo
de migalhas.
Eu quis me afastar. Ver se ela sentia minha falta. Mas ela é
a única pessoa com quem eu não consigo ficar sem falar. Eu quis focar em outras
mulheres. Algumas delas com tanto potencial, mas nada parecia funcionar. Sempre
deixava meus finais de semana livres, na esperança de receber outro “ow”. Nada.
“Eu não consigo, Douglas. Eu estou acostumada com homens no
meu pé. Eu gosto muito de você, mas se eu não sou suficiente para você, não dá
para a gente se ver mais.” “Só eu te chamo para sair, você nunca dá atenção
para mim.” Eu me sentia um canalha por essas afirmações serem verdade e serem
sobre mim. E não serem as únicas do gênero. Sobre como eu acabava lidando com
todas as outras mulheres na minha vida. Como moradoras do gueto do meu coração.
Vivendo de cancelamentos e possibilidades que viravam nãos. Quem pode julgar
uma pessoa por tratar você do jeito que você trata outras pessoas.
Mas o que mais me incomodava é que eu aprendi, depois de
muito tempo batendo cabeça, o jeito certo de fazer as coisas. O que funciona na
hora de conquistar alguém. Mas eu não consigo fazer com ela. Eu fico largado
sem ação esperando que alguma coisa mude. Como um viciado, eu fico adiando o
dia de começar a rehab. Estabelecendo prazos. Para mim mesmo. O próximo eu vou
cumprir. Uma hora eu vou ter que cumprir.